Em 2008, eu e mais três amigos (Diogo Cunha, Aline Pollilo e Liliana Fernandes) resolvemos escrever um artigo sobre o Teatro do Oprimido, na intenção de refletir sobre os veículos de comunicação comunitários que existem e que podem surgir no futuro. Compartilho essa reflexão, divididas em três postagens, para pensarmos um pouco sobre a força que esse tipo de iniciativa pode ter na sociedade.
Abraços a meus companheiros de texto
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Augusto Boal criou o Teatro do Oprimido na década de 1970, durante a ditadura militar. Para enfrentar o AI-5, o movimento teatral destinava-se a mobilização do público, através de práticas cênico-pedagógicas. Até hoje, suas técnicas são utilizadas em diversos lugares como o Centro de Teatro do Oprimido (CTO), no Rio de Janeiro; a Fábrica de Teatro do Oprimido, em Londrina e a Associação Internacional do Teatro do Oprimido (AITO), implantada em diversos países do mundo como: Egito, Estados Unidos, França, Sudão, Burquina Faso, Senegal, Mali, Guiné-Bissau, Angola, Etiópia, República Democrática do Congo, Quênia, Uganda, Moçambique e África do Sul. Em reconhecimento ao seu trabalho, Augusto Boal foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em 2008. No ano seguinte, pouco antes de seu falecimento, recebeu da Unesco a nomeação de Embaixador mundial do teatro.
A idéia do movimento teatral surgiu a partir de uma situação vivida por Boal. Seu grupo encenava uma peça de teatro sobre a questão agrária e, ao final do espetáculo foram questionados se poderiam ajudar a confrontar um jagunço que havia desalojado um de seus companheiros. Nenhum dos componentes se voluntariou para auxiliá-lo. Neste momento, o dramaturgo constatou que apesar de encenar sobre o tema, o grupo não era capaz de seguir os conselhos, e compreendeu que o teatro deveria ser um diálogo e não um monólogo.
Uma das primeiras técnicas criadas por Boal foi o Teatro Jornal, em 1971. Este consiste na escolha de notícias, tentando sempre identificar as possíveis restrições que poderão ter sofrido, assim como os reais interesses daquela publicação. Os atores transformavam a matéria em ações teatrais, discutindo o assunto de diferentes maneiras. Um exemplo dessa técnica foi a encenação de fatos históricos similares à matéria, que aconteceram em outra época e lugar.
Outra metodologia de Boal foi o Teatro Imagem. O grupo decidia um tema para ser interpretado, podendo ser esse um problema de âmbito local ou global. Os atores ficavam como estátuas a disposição do ator principal, que os moldaria buscando interpretar a situação em questão. O silêncio neste método é imprescindível para a construção do quadro vivo. Era o ensaio da transformação da realidade, através da imagem corporal.
O Teatro Invisível era outra maneira de encenação, na qual somente os atores saberiam que aquilo é uma representação. O público assistiria a cena presumindo ser a realidade. Para esta forma, o local não pode ser o ambiente teatral, e sim o mais próximo do cotidiano das pessoas, como a rua. É realizado um roteiro de improvisação, com a expectativa que o público participe da cena, discutindo o tema, ou seja, como um “ator” da peça. O aspecto invisível desta técnica estaria na forma de convencer o público de que aquela cena é real e que eles poderiam “atuar” com liberdade.
Durante seu período no exílio, Boal participou de uma campanha de alfabetização, no Peru, seguindo a proposta de Paulo Freire. Segundo o educador, “Dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens”. Nesta prática de libertação o mundo seria desvelado para o homem. Entretanto, Paulo Freire coloca que só é possível chegar a esta liberdade através da práxis. Esta união da ação com a reflexão promoveria a adesão das massas populares na luta contra o opressor. Os líderes revolucionários trabalhariam organizando os oprimidos para a transformação, na qual ela não seria para eles e sim feita com eles. Fernanda Pereira, em sua dissertação de mestrado, transfere esta abordagem para os meios de comunicação e explica:
“A mídia do oprimido é a mídia em benefício da cidadania. Cidadania esta construída pelos próprios cidadãos. É a expressão dos setores populares organizados da sociedade cível, sendo um poderoso instrumento de educomunicação popular”.(PEREIRA, Fernanda. Mestrado UFRJ).
Da mesma forma João Paulo Malerba discute a respeito dos limites do que poderia ser considerado ou não um meio de comunicação comunitário. Ele argumenta que esses meios auxiliariam na circulação das demandas dos excluídos do processo comunicacional, a partir das próprias enunciações.
Após sua experiência com o programa de educação, Boal cria o Teatro-Fórum. A técnica utiliza fatos reais para serem encenados, retratando o conflito entre oprimidos e opressores. O público é convidado a participar, se colocando no lugar do oprimido, assim buscando soluções para os problemas apresentados. Para Boal, no Teatro do Oprimido não existem espectadores e sim "espect-atores". O conceito principal é de que o homem ensaie sua própria revolução, sem delegar este papel ativo para outros personagens. Ele se conscientiza diante dos fatos e identifica sua posição de autonomia.
Logo, Augusto Boal a partir da prática do Teatro do Oprimido corrobora com a crítica à sociedade capitalista moderna, “globalista” em sua essência, para tomar o termo utilizado por Muniz Sodré em O Globalismo como neo-barbárie. A maneira encontrada por Boal para dar voz ao excluído, vitimizado pelas agruras das desigualdades sociais, é a de permitir que a manifestação cultural seja feita por ele e para ele. Isto é, a lógica do Teatro do Oprimido é a de apresentar os diagnósticos do presente e lançar os prognósticos para o futuro, usando para isso, sempre o olhar crítico, marca de todo e qualquer veículo que queira ser considerado comunitário. Raquel Paiva, ao longo de seus estudos sobre a situação do oprimido e suas respectivas comunicações, alerta justamente para a capacidade de o veículo ser constituído, no caso de Boal, encenado, por pessoas da comunidade, no caso a comunidade dos colocados à margem pela ordem social-econômico-política vigente. Mas a comunidade do Teatro do Oprimido é diferenciada justamente por gerar alternativas ao Estado neoliberal, fracassado e marcado pelas máximas do trabalho (lucro excessivo), do capitalismo (desigualdades) e da técnica (excludente).
Utilizando o conceito de hegemonia do pensador italiano Antonio Gramsci, Eduardo Coutinho em seu texto A comunicação do oprimido: malandragem, marginalidade e contra-hegemonia, denuncia a debilidade das instituições que poderiam exercer uma ação e uma comunicação contra-hegemônica nas comunidades oprimidas da cidade do Rio de Janeiro. Assim ele se reporta: “Esta debilidade das organizações culturais das comunidades pobres só pode ser compreendida como resultado de uma deliberada opressão espiritual. Basta pensar nas instituições de ensino, precarizadas pelas políticas de educação; nas associações de moradores, transformadas, muitas vezes, em sedes da chamada ‘política mineira’ ou coagidas pelo tráfico; nos partidos políticos, esvaziados, eleitoreiros, sem função orgânica na comunidade; e mesmo nas escolas de samba, controladas a ferro e fogo pelo jogo do bicho. Neste quadro, o chamado ‘terceiro setor’, despolitizado, patina entre o assistencialismo e o oportunismo.”(COUTINHO,....:2).
O Teatro do Oprimido, diz Boal, “é um teatro do confronto”. Sua razão é o confrontamento com o opressor, que está na sociedade. Este é um ponto importante e que diz muito respeito a disciplina de Jornalismo Comunitário. O Teatro do Oprimido não é apenas uma manifestação artística, estética. É sim uma tentativa de intervenção na sociedade, sugere uma ação no sentido de lutar contra o opressor, representado por várias instâncias da sociedade. O Teatro do Oprimido tem o papel de escancarar a realidade em que está inserida a dualidade opressor-oprimido. Não é apenas um divulgador de idéias contra-hegemônicas, e sim um espaço de demonstração da luta aberta contra a opressão. Aí, mais importante que as idéias, é a demonstração da necessidade de ação contra o opressor. Boal afirma que não se deve ignorar a relação opressores-oprimidos, e que, uma vez reconhecida essa relação, deve-se escolher o lado dos oprimidos. Deve-se tomar uma posição clara, não ficar neutro. Para ele, num ambiente de oprimidos e opressores, ser neutro significa ser opressor; portanto, a neutralidade é falsa.
Trazendo essa ideologia para a prática do Jornalismo Comunitário e parafraseando Boal, podemos aplicá-la afirmando que um verdadeiro Jornalismo Comunitário é aquele da comunidade, para a comunidade, sobre a comunidade e pela comunidade; comunidade que geralmente é oprimida. Prosseguindo, podemos dizer que só se realiza o Jornalismo Comunitário a partir de uma clara tomada de posição a favor da comunidade. Para isso ocorrer, deve-se conhecer e compartilhar os problemas da mesma. Ou seja, o Jornalismo Comunitário deve ser feito pela comunidade. Se é permitido alguém que não seja da comunidade em sua produção, este deve ser inteiramente comprometido com os interesses dela, conhecedor de sua realidade e não deve ter nenhum tipo de visão paternalista. Sendo assim, nota-se que não há prática de Jornalismo Comunitário na grande mídia, pois quando é reportado algum problema de alguma comunidade, pra começar, a reportagem não tem a participação da comunidade em sua produção, e isso já inviabiliza a prática do Jornalismo Comunitário, de acordo com a ideologia do Teatro do Oprimido, que aplicamos a prática do jornalismo.
Sem a possibilidade de manifestação por meio de um Jornalismo Comunitário e das outras instâncias a que já nos reportamos por sua debilidade, os moradores das comunidades oprimidas só têm uma forma de resistir a opressão, a forma mais simples e rica e que nenhuma hegemonia pode aniquilar; através da relação pessoal e dialogal que se traduz na linguagem. Essa é a hipótese de Coutinho. “Neste sentido, minha hipótese-diretriz sugere que a comunicação do oprimido nas comunidades periféricas está reduzida, praticamente, à sua esfera mínima: a esfera da comunicação oral, dialogal, interpessoal. Esfera esta impossível de ser inteiramente colonizada pelos detentores dos meios de informação”(COUTINHO,....:3). Assim como no Teatro do Oprimido, nas comunidades é também pelo diálogo que se vai refugiar a resistência do oprimido. A linguagem produzida pelos habitantes de uma comunidade oprimida (Coutinho utiliza o exemplo dos morros cariocas), é uma fonte de resistência, por sua originalidade e constante mutação a que não acompanham os meios hegemônicos. A famosa malandragem dos habitantes dos morros cariocas, expressa nessa linguagem “malandra”, é uma forma de contestação dos valores hegemônicos. Aliás, a “malandragem” é, em grande medida, produto dessa linguagem.
Se aparentemente essa resistência por meio da linguagem nos morros cariocas pode parecer um tanto inconsciente e enviesada, Coutinho afirma que a “moral malandra envolve uma embrionária consciência de classe que se manifesta no reconhecimento da existência de oprimidos e opressores”(COUTINHO,...:6).
Assim, vemos duas formas distintas de resistência a opressão: uma baseada em uma consciência latente e em uma ação aberta realizada no plano estético, e outra baseada na construção subjetiva e elaborada de uma linguagem no plano real, que tiveram origem na forma inviolável de comunicação; a pessoal, a verdadeira.
O que Boal faz, através de sua prática teatral particular, não é querer anular o Estado, e sim gerar alternativas a ele. É necessário que se ressalte a capacidade de convivência mútua da figura estatal com as alternativas a ela. Uma das alternativas que o Teatro do Oprimido traz é a de desmistificar a figura do indivíduo atomizado (acrítico). Aqui não prevalece mais o “eu”, e sim o “nós”; aqui, a técnica é aliada ao fator humano. Boal acaba por mostrar ser possível a existência de um Estado Comunitário, onde as fronteiras são realmente apagadas e cujo enfoque está no investimento na solidariedade, na generosidade, na tolerância, na amizade e no não-fundamentalismo. A prática da Sociologia das Ausências, que Boal usa mão com competência, é o fio que tece toda a prática do Teatro. Teatro este, que não tem a pretensão de entreter, e sim de alertar e despertar visão crítica nos governos municipal, estadual e federal.
O termo oprimido tem a principio carga simbólica negativa, reforçando estigmas, no entanto ele deve ser resgatado e ressimbolizado como conscientização da situação social de opressão sofrida pelo oprimido e imposta pelo opressor. Identificar essa exploração, esse cerceamento da potencia de liberdade do homem, reconhecendo-se como oprimido, é essencial para engajá-lo na luta pelo reconhecimento do seu lugar histórico no mundo pela sua libertação. A consciência provém da critica e a comunicação popular deve possibilitar essa autoconsciência para a emancipação dos homens. Furtar-se ao engajamento significa aderir ao que está estabelecido como padrão, negligenciar – se do mundo, estabelecendo uma relação de apatia e hipocrisia com a realidade e com os que sofrem com ela.