É preciso acreditar no homem simples, comum, não subestimá-lo na capacidade de assumir seu papel de sujeito da historia. O preconceito que se tem quanto ao seu potencial acaba por torná-lo apenas objeto de conhecimento, dócil e paciente receptor, depósito de “comunicados” quando, na verdade, a busca pelo conhecimento exige do homem uma postura impaciente, inquieta e indócil. Sem essa comunicação efetiva, não há possibilidade de formação de uma consciência contra-hegemônica. Para Freire, a única saída para este impasse está na comunicação dialogal, na relação efetivamente pessoal. Só assim se pode realizar uma resistência a função hegemônica do Estado. É pra esse ponto que convergem o pensamento de Freire, a hipótese de Coutinho e a atuação do Teatro do Oprimido, de Boal.
Evidentemente, o teatro é um meio cujas relações se dão através do diálogo, onde a interação se dá por meio de relações fisicamente pessoais. Essa é a matéria-prima do teatro, o seu meio vital. Portanto, o teatro tem uma condição propícia ao florescimento de idéias baseadas nas relações inter-pessoais, idéias essas que podem ser não-hegemônicas, pois a interação aí se dá com o uso apenas dos corpos e mentes dos participantes desse ambiente. É como se estivessem desprovidos da roupagem hegemônica. No Teatro do Oprimido eles realmente estão.
Cabe ressaltar que o Teatro do Oprimido também é formado por opressores conscientes de que um dia foram pedras, e não vidraças. Em seu texto, Oprimido e Opressores, Boal narra a história de um pai que lutava contra a ditadura do Chile, mesmo admitindo que agia como um ditador em família. O dramaturgo explica ainda que esse teatro é trabalhado com homens que batiam em suas mulheres e sentiam vergonha ao assistir a cena. Boal afirmava que esses eram mais fáceis de serem transformados, pois ao coloca-los para atuarem em papéis que condiziam com o que praticavam fora do tablado, se sentiam envergonhados e decididos a mudarem.
Além dessas técnicas, há ainda o Teatro Legislativo e o Arco-Íris do Desejo. No primeiro, os “espect-atores” seriam estimulados, após participarem da ação dramática, a escreverem propostas de lei para pôr fim a situação-problema. Por meio dessa iniciativa, 12 leis municipais forma criadas no Rio de Janeiro. Já o Arco-Íris do Desejo é conjunto de procedimentos terapêuticos aplicados em instituições para tratamento psiquiátrico. Numa entrevista a Revista Carta Capital, Augusto Boal falou sobre esta técnica:
“Procuramos ativar a parte saudável do cérebro doente, estimulá-lo no que tem de vivo e criativo. Com isso, o teatro é capaz de devolver ao convívio social alguém que tinha se isolado. Nas comunidades carentes acontece o mesmo”.
(BOAL, Augusto, 03 de abril de 2009, Revista Carta Capital).
Portanto, a cada encenação do grupo dirigido por Boal não presenciamos temáticas teatrais, e sim deveres de cidadania, isto é, podemos afirmar, baseado nos conceitos de Raquel Paiva, que o Teatro do Oprimido vem, a partir de seu discurso político, crítico, transparente e reflexivo, focar na “humanização da humanidade”, ou seja, no findar da máxima de que o “homem é o lobo do homem”.
Com o marginalizado sendo capaz de manifestar o seu pensar para a sociedade, Boal contribui para a desnaturalização do pensamento condizente ao regime em que vivemos, caracterizado por estabelecer promessas e de não cumpri-las. O indivíduo pertencente ao mundo globalizado vê, através do discurso capitalista, a promessa de um mundo liberto e igualitário ser estabelecida. Porém, na prática, a liberdade está associada ao poder de compra desse individuo, ou seja, quanto mais se compra, mais poder se tem. O que esta à margem desse parâmetro, tem que se contentar com o desprezo, o silêncio e as mazelas impostas pela alta cúpula social. É raro vermos artistas oriundos de favelas e impregnados pelas marcas da exclusão serem protagonistas da teledramaturgia, por exemplo. O ator Thiago Martins, oriundo do grupo Nós do Morro e morador da Favela do Vidigal fez apenas papéis secundários nas novelas que encenou. A condição de figurante parecer ser eterna e apenas com a aquisição de um olhar crítico, propiciado pela teoria é que se poderá chegar a prática contra-hegemônica de pensar e de lidar com o “outro”.
Fernanda Pereira coloca a crítica que Paulo Freire fazia a comunicação midiática: “a comunicação midiática é antidialógica e como tal incompatível com uma verdadeira comunicação. Os meios de comunicação na verdade são meios de comunicados. São unilaterais. O espectador é objeto passivo”(PEREIRA, 2009). Esta aí uma crítica não só as mídias comerciais, mas também as mídias comunitárias, que por mais que se esforcem para dar voz a comunidade, não deixam de ser predominantemente apenas emissoras de comunicados. O que não se estabelece aí, segundo Paulo Freire, é uma efetiva comunicação. “A comunicação verdadeira não nos parece estar na exclusiva transferência ou transmissão de conhecimento de um sujeito a outro, mas em sua co-participação no ato de compreender a significação do significado” (RIBEIRO APUD FREIRE, 2009).
A comunicação implica a reciprocidade constante. Segundo Freire, não é possível compreender o pensamento fora de sua dupla função cognoscitiva e comunicativa; os sujeitos são co-intencionados ao objeto de seu pensar e se comunicam com seu conteúdo. Exige a co-participação ativa do receptor no ato de construção do significado. Obstruir a comunicação é coisificar o homem, naturalizar e cristalizar a realidade.
O Brasil, se constituiu historicamente sem contemplar o diálogo, a comunicação efetivamente democrática, privilegiando a verticalização e a dominação. Porém através da experimentação de uma comunicação dialógica, é possível romper com a dicotomia emissor – receptor e tornar a fala coletiva, possibilitando a mudança e vivência da “liberdade para criar e construir, para admirar e aventurar-se”. As alternativas comunicacionais apesar de se inserirem em uma perspectiva democrática, de participação de atores sociais até então alijados do processo de produção das informações, passivos aos conteúdos divulgados pela mass media, ampliando o quadro de emissores, não garantem que os veículos e processos sejam comunitários.
A experiência comunitária potencializa uma alternativa de sociabilidade, uma vivencia real e comprometida com o território, tomado como lugar de fruição de múltiplas identidades e com o exercício da cidadania. Nesta perspectiva, é estabelecida uma comunicação horizontal, sem pretensão de dirigismo ou intermediação, ampliando a participação da comunidade e visando a reflexão e aprendizado de conteúdos importantes para o grupo social, próximos ao seu universo, que tem influencia sobre suas vidas. É a mobilização vinculada ao exercício da cidadania como direito e dever social, buscando pontos de fuga do status quo, de subversão da realidade dada, da construção permanente de novas possibilidades de interação mais inclusivas e críticas, comprometidas com a ética e com as mudanças sociais.
A comunicação comunitária e sua gestão têm por premissa o comprometimento político de interligar, atualizar e organizar toda a comunidade que participa do processo comunicativo, fortalecendo sua ação política, seu poder de barganha, de negociação simbólica da sua identidade, de impacto social. A comunidade é e representa uma possibilidade de interação social com predomínio de relações concretas e não abstratas e dispersas. Ela aceita o real societário, compreende que o fortalecimento da comunidade promove coesão social através da cooperação e representatividade. É a vinculação da comunidade com o veiculo, seu comprometimento e inserção total na gestão do sistema. Seus membros sentem-se mais envolvidos, reconhecidos na medida em que esse veículo aproxima-se dos seus objetivos, da sua realidade e das suas expectativas enquanto comunidade.
O resgate da cidadania é indissociável das questões social, política e econômica que perpassam a comunidade. A conscientização e compromisso político são fundamentais para superar, cooperativamente, as limitações vividas pela comunidade, e transforma-la. A comunicação comunitária tem por base “o não-atrelamento aos padrões existentes, o incentivo à inventividade, ao processo criativo como forma de subverter o esquema dominante”. Desta forma, evita-se a verticalidade do discurso e ativa-se a decodificação, estimulando o aprendizado. Através da comunicação a esfera publica pode ser constituída como conjunto de cidadãos participantes, comprometidos com a horizontalidade do discurso e atuando como sujeitos políticos.
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